29 agosto 2011

Dojo e Capoeira 5 - Bimba e a regional


  Na semana passada falamos sobre o dilema entre popularizar e preservar. Dessa vez, num post um pouco mais longo que os anteriores, vou falar sobre como o mestre Bimba influenciou definitivamente a história da Capoeira, e o que podemos tirar de aprendizado daí.
      
No finalzinho de século XIX, a capoeiragem passou a figurar no código penal brasileiro como crime, passível de pena de prisão. Em 2008, ela passa a ser oficialmente reconhecida como patrimônio cultural do país. O que aconteceu de lá pra cá é uma história longa e complexa que nem me atrevo a tentar resumir (mesmo porque não sou eu o especialista no assunto). Mas quero mesmo assim tocar em alguns pontos que são importantes para minha tese. 
Mestre Bimba

Antes de mais nada, é importante esclarecer que a história da Capoeira (assim como tantas outras) é coberta de mitos que até hoje são aceitos pela maioria das pessoas, apesar do grande desenvolvimento recente nas pesquisas históricas nessa área. Diferentemente do que muita gente pensa, a Capoeira teve muito provavelmente origem urbana, no Rio de Janeiro, e representava muito mais uma brincadeira de vadios do que uma tática de guerrilha dos escravos na fuga das senzalas, dos engenhos de cana de açúcar da Bahia. A capoeira não era então praticada de calça branca, com hora e local marcados, não tinha cordas coloridas na cintura e muito menos era ensinada em academias em alguns dias estipulados da semana, na forma como a conhecemos hoje.

No meio desse longo caminho de transformação estava, como já mencionado no post anterior, um homem cujo projeto foi talvez o fator de mudança mais profundo ao longo desse processo: mestre Bimba. Negro e pobre - assim como provavelmente todos os outros capoeiristas da época - foi ele quem percebeu que a luta brasileira vinha perdendo cada vez mais valor e respeito da sociedade do início do século. Bimba era lutador conhecido na cidade por desafiar e vencer praticantes de todas as outras artes marciais, e achava que a incorporação de golpes e movimentos mais agressivos fariam da Capoeira uma luta mais eficiente e respeitada.

Nesse processo, além de transformar a Capoeira do ponto de vista dos movimentos e golpes, ele também incorporou em sua prática alguns simbolismos e ritos familiares a outra camada da sociedade: a classe média-alta, branca, da sociedade baiana. Bimba criou um método de ensino e passou a ministrar aulas da luta brasileira em academias militares. Incorporou uniformes, um sistema de graduação (que deu origem às cordas coloridas que conhecemos hoje), e rituais de batismo e formatura - elementos ocidentais completamente estranhos à manifestação vadia que até então acontecia espontaneamente nas ruas.

De lá pra cá, muitos desdobramentos dessa transformação fizeram da Capoeira isso que conhecemos hoje. Como discutido no post passado, esse processo de transformação é visto por muitos como uma deturpação cultural a que se deve oferecer resistência e da qual a tradição precisa ser preservada. Para outros, ele foi fundamental para que ela sobrevivesse ao preconceito e à repressão que a sociedade brasileira sempre teve em relação às manifestações de raizes africanas e pobres. Minha opinião é a de que ambas as visões estão parcialmente certas e erradas, ao mesmo tempo. É claro que a Capoeira teve prejuizos com essas mudanças, mas também é claro que teve benefícios. Não é a toa que é hoje um dos elementos culturais brasileiros mais valorizados no exterior. Aliás, muito mais que aqui, diga-se de passagem!

Um processo parecido aconteceu com o Jiu-Jitsu, no Japão pós revolução industial, depois da revolução Meiji, durante o processo de 'modernização' e ocidentalização da cultura japonesa. Como parte de um projeto governamental, num processo de negociação bem parecido com aquele feito por Bimba, Jigoro Kano esterilizou a agressividade da luta e criou o Judô, com suas regras e sistemas de faixas. Por um lado ele deturpou a luta e a tornou muito menos eficiente, mas por outro, ele manteve vivo um elemento da cultura samurai que estava então em processo de verdadeiro extermínio e a elevou mais tarde ao status social de esporte olímpico, praticado no mundo inteiro.

Deturpação ou adaptação? É impossível delimitar até que ponto essas mudanças foram benéficas ou destrutivas. Mesmo porque ninguém nunca saberá o que teria acontecido caso esses dois homens não tivessem interferido na história. Eles provavelmente agiram movidos por suas intuições, imersos que estavam nos respectivos processos sociais, e portanto é impossível julgar se estavam certos ou errados.
Jigoro Kano

Eu, de minha parte, prefiro também acreditar em meus instintos de que o desenvolvimento dos processos pedagógicos estão em plena metamorfose (assim com todo o resto da sociedade em rede) e de que os critérios de mérito e reconhecimento profissionais na área de TI são irracionais (no mínimo) e incompatíveis com a nova realidade que esta-se criando. Creio portanto, que algum tipo de intervenção possa (e deva) ser feita para que os processos pedagógicos surgidos e desenvolvido no contexto dos coding-dojo's ganhe mais reconhecimento e adesão social, transformando sua atual situação de marginalidade. 

Para isso, me parece inevitável que tenhamos que passar por algum processo de negociação e adaptação, assim como aconteceu com a Capoeira e com o Judô. Acredito ainda que a comunidade deve tomar a frente nesse processo, de modo consciente, refletido, coordenado e pró-ativo, de modo a tomar as rédeas e participar dele dando as cartas, ao invés de apenas reagindo ao que acabar acontecendo por si só.

A partir do próximo post, pretendo começar a refletir sobre possíveis formas de intervir nesse processo. O que podemos fazer em termos de organização dos nosso grupos de dojo? Até que ponto podemos intervir para fortalecer socialmente a prática, mas sem ferir seus princípios fundamentais e sua natureza não-ocidental? Semana que vem eu coloco minha opinião aqui ;-)

Continue lendo a última parte >>

Nenhum comentário:

Postar um comentário